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Literatura e Psicanálise: o quintal onde o poeta brinca



Literatura e Psicanálise: o quintal onde o poeta brinca


Daniel Carvalho de Almeida

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP)


Saiba como citar este artigo: ALMEIDA, Daniel Carvalho. Literatura e Psicanálise: o quintal onde o poeta brinca. Disponível em: <https://www.danielgtr.com/post/literaturaepsicanalise>

Resumo: A partir das associações entre poesia e infância, com vistas a capturar traços do prazer literário, Freud abriu um vasto campo de pesquisa nos terrenos da arte e psicanálise, provocando-nos a continuar essa potente intersecção. Este artigo é um aceite a esse convite. Levando em conta, portanto, a semelhança entre o brincar da criança e a criação do poeta, buscamos ampliar esse profícuo diálogo, de modo a oferecer contribuições também para o terreno do ensino, mais precisamente do ensino de literatura. Nossa proposta é mostrar que reconhecer a criança e o poeta que existe dentro de nós é necessário para a construção de uma voz autoral nas escolas, o que, consequentemente, pode nos auxiliar, na fase adulta, a vivenciar nossas fantasias sem vergonha ou censura, bem como a trabalhar melhor nossa dimensão psíquica a fim de encontrar caminhos para lidar com as tensões de nossas realidades.

Palavras-chave: Psicanálise, Literatura, Educação, Criação Literária.



As coisas que não têm nome são mais pronunciadas

por crianças.


Manoel de barros



Os escritos sobre arte de Freud revelam a importância que o autor via no tema da criação artística e do efeito das obras de arte sobre o espectador. Nos inúmeros eixos de reflexão que compõem seus estudos, uma das características mais evidentes é seu interesse na busca pelas raízes infantis no processo de construção de uma obra. Dessa maneira, Freud abriu um vasto campo de pesquisa no campo da estética e possibilitou que esse valoroso diálogo entre arte e psicanálise não ficasse restringido aos artistas; ademais, Sousa, em seu posfácio de Arte, literatura e os artistas (FREUD, 2021, p. 330), afirma que “todos deveriam colocar esta tarefa diante de si”. Como facilitar, então, essa atividade, psíquica e poética a todas as pessoas?


1. O QUINTAL ENTRE A PSICANÁLISE E A LITERATURA

A seguinte hipótese de Freud (2021, p. 53): “se pelo menos pudéssemos encontrar em nós mesmos, ou entre os nossos próximos, uma atividade de algum modo semelhante à do poeta!” pode nos levar a refletir sobre o potencial poético que cada pessoa carrega dentro de si. Freud (2021, p. 53-54) assume uma perspectiva a esse respeito ao dizer que “o próprio poeta” parece assegurar que, em cada um, “existe um poeta escondido e que o último poeta deverá morrer junto com o último homem”. Levando isso em conta, o pai da psicanálise (2021) ainda questiona se não deveríamos procurar os primeiros indícios da atividade poética já nas crianças. Se trouxermos essa reflexão para o campo do ensino, podemos desdobrar esse questionamento: como valorizar a atividade poética das crianças nas escolas e favorecer uma aproximação mais sensível entre os alunos mais velhos (adolescentes, jovens, adultos) e a escrita literária?

De fato, não seria possível dar conta de todos esses questionamentos aqui, entretanto, para começarmos a pensar sobre isso, primeiro precisamos compreender melhor a relação entre o “brincar” e o “fantasiar”. Para Freud (2021, p. 54), a criança, quando brinca, “transpõe as coisas do seu mundo para uma nova ordem, que lhe agrada”. É nessa circunstância que a criança se comporta como um poeta - ou que um poeta se comporta como a criança -, pois, a partir de grande mobilização afetiva, a criança “empresta” seus “objetos imaginários e relacionamentos às coisas concretas e visíveis do mundo real”. Algo semelhante faz um poeta ao criar um mundo de fantasia. Uma obra de arte, por exemplo, ainda que construída a partir do mundo “real”, “exterior”, pode gerar um “mundo novo”, cuja natureza poética permite sentir melhor a realidade originária tanto que a capacidade de convencer, nos textos literários, não depende muito da tentativa de retratar uma realidade; a importância de uma obra, muitas vezes, se dá pela forma com que elementos não-literários são transformados em outra realidade, uma realidade que é autônoma e literária no texto. Sobre essa perspectiva, Candido (2007, p.35) explica que “[...] uma obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que obteve para plasmar elementos não literários”. Diante disso, podemos enxergar de forma mais aproximada as afinidades entre a brincadeira para a criança e a criação poética para o poeta. De uma lado, a criança “empresta” seus objetos imaginários às coisas concretas do mundo real e, por outro, o poeta necessita do empréstimo de objetos concretos para plasmá-los e dar-lhes outra vida.

As relações entre criança e poeta são tão próximas que Freud (2021, p. 55.) discorre sobre a “formação substitutiva”, isto é, quando crescemos e paramos de brincar, deixamos de realizar uma atividade que nos oferece ganho de prazer, no entanto temos dificuldades para renunciar esse prazer e, em decorrência disso, ocorre uma “formação substitutiva”, “trocamos uma coisa por outra” (FREUD, 2021, p. 55.); assim, em vez de brincar, passamos a fantasiar. Além do mais, essa “substituição” se torna um elemento decisivo tanto para a escolha do tema poético para o poeta, como para os possíveis efeitos da obra sobre o leitor.

Como já vimos essa relação entre artista e criança na voz de um teórico, vejamos como isso se dá a partir da voz do próprio poeta, o que pode nos ajudar a entender esses conceitos de forma bastante prática:


VII


No descomeço era o verbo.

Só depois é que veio o delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá onde a

criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.

A criança não sabe que o verbo escutar não funciona

para cor, mas para som.

Então se a criança muda a função de um verbo, ele

delira.

E pois.

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer

nascimentos —

O verbo tem que pegar delírio.


(BARROS, 2016. p. 17)


Neste texto, que é um trecho do poema “Uma didática da invenção”, no qual Manoel de Barros lança uma série de “ensinamentos”, organizados de forma enumerada, sobre o fazer poético, interpretamos que, quando uma poesia é composta, junto a ela, são criadas novas formas de ver o mundo. Daí a relação com a infância, pois fazer poesia, como afirma Manoel de Barros, é o “criançamento” das palavras: da mesma forma que uma criança brinca, o poeta revoluciona a linguagem quando faz dela cenário de brincadeira. Assim, o verbo “pega delírio” quando o poeta fantasia, quando aprende a ver o mundo como criança que ressignifica objetos cotidianos ao inventar brinquedos.

Essa ressignificação, que se assemelha ao ato de explorar o mundo com a curiosidade de quem o vê pela primeira vez, é própria da infância e é também presente no trabalho do poeta. Por isso que esses conceitos não são importantes unicamente para o estudo da fantasia no âmbito da psicanálise, são igualmente relevantes para superar uma tradição passiva e copista de ensino, de modo a valorizar a autoria de literatura. Nesse sentido, a fim de recuperar as experienciações estéticas que parecem sufocadas na escola, principalmente a partir dos anos finais do Ensino Fundamental, precisamos pensar uma “didática da invenção” e levar os alunos mais velhos a perceberem que, para “inventar poesia”, é preciso estar aberto ao fantasiar e ver o mundo com o olhar de menino “ligado em despropósitos”, de criança que faz “peraltagens com as palavras”.


2. O QUINTAL ENTRE A PSICANÁLISE E A EDUCAÇÃO

Partindo da pressuposição de que a criação literária é uma continuação e, ao mesmo tempo, uma substituição das brincadeiras infantis, Freud (2021) nos desafia a pensar sobre a escolha dos temas poéticos e indica caminhos que nos levam a refletir sobre o efeito poético. Entretanto sua contribuição nos provoca também em outras áreas. Assim como o autor afirma que essa atividade, de formar fantasias de tempos em tempos na vida, permaneceu durante muito tempo sem atenção e “cujo significado não foi suficientemente apreciado” (FREUD, 2021, p. 55), podemos afirmar que esse estudo não possui apreciação devida no campo do ensino, com exceção dos estudos e práticas mais recentes voltados para a Educação Infantil. Desse modo, consideremos ao menos dois motivos para que essas contribuições da psicanálise recebam mais atenção nos processos de ensino e aprendizagem: a abertura para o imaginário e a libertação das tensões da psique.

Com relação ao primeiro motivo, lembremos que, à medida que as pessoas crescem, parecem ficar mais fechadas para o imaginário. Freud (2021, p. 56) sinaliza que o adulto, ao contrário da criança, sente vergonha de suas fantasias, preferindo “responder por seus delitos” a partilhá-las com outros adultos; já a criança, brincando sozinha ou com outras crianças, não esconde sua brincadeira diante de ninguém. Ademais, no âmbito do convívio social, espera-se que as pessoas, com o passar dos anos, não brinquem mais, não fantasiem mais, por isso consideram as fantasias como “coisas de criança e proibidas”.

Nessa direção, a escrita literária pode ajudar a despertar nosso o que se mantém escondido, pois contribui para a elaboração do nosso mundo interior e, portanto, por estar de modo indissoluvelmente ligado, da nossa relação com o mundo exterior. Tanto na literatura como na psicanálise, a linguagem está muito além de um código, uma ferramenta, um instrumento, por isso, em seus estudos sobre leitura literária, Petit (2009, p. 71) defende que, “quanto mais formos capazes de nomear o que vivemos, mais aptos estaremos para vivê-lo e transformá-lo”, todavia “a dificuldade de simbolizar” pode vir acompanhada “de uma agressividade incontrolada”, pois “quando se é privado de palavras para pensar sobre si mesmo, para expressar sua angústia, sua raiva, suas esperanças, só resta o corpo para falar: seja o corpo que grita com todos os sintomas, seja o enfrentamento violento de um corpo com outro”. Pensando nisso e retomando a pergunta de Petit (2009, p. 134), “o que fazer para que os rapazes tenham menos medo da interioridade, da sensibilidade?” Ao passo que a vergonha de revelar as fantasias parece estar acompanhada do medo de mostrar a interioridade, o trabalho com a escrita poética nas salas de aula, resgatando e reconhecendo a poesia do brincar de criança, pode ser uma forma de balançar as estruturas desse estereótipo do homem viril, sem emoções, que tem medo de se abrir por ter medo de si, que sente vergonha de ser sensível e que censura suas próprias fantasias.

Isso nos leva ao segundo motivo para que o estudo das fantasias seja mais discutido nos campos do ensino: a libertação das tensões da psique. Tendo isso em vista, podemos refletir sobre os benefícios de gozarmos com nossas fantasias sem censura ou vergonha, não apenas enquanto leitores de literatura, como também no papel de autores de textos poéticos.

Nesse viés, a escrita literária pode servir como um espaço psíquico de elaboração da nossa subjetividade, um local de acolhimento em que podemos nos proteger contra as adversidades da vida por meio de nossas fantasias. Se o ensino de literatura nas escolas abrir-se para essas questões, viabiliza, consequentemente, aos estudantes, meios para que eles desenvolvam uma atividade psíquica ao passo que se apropriam do seus textos, que ressignificam os usos de sua escrita, que se expressam, nas linhas de sua própria autoria, seus desejos, fantasias, angústias. Da mesma forma que censuramos as fantasias e nossa sensibilidade, também adquirimos medo de enfrentar a tristeza da realidade. Muitos estudos, que perpassam pela psicanálise e literatura, mostram como a leitura literária nos auxilia a darmos um nome a nossas feridas e aos nossos medos, tornando-os, assim, menos assustadores. A experiência da criação artística também nos permite partir de imagens poéticas para desenhar um espaço de acolhimento próprio, dentro do qual podemos transgredir limites, reconquistar uma posição de sujeitos de nossas vidas, reinventar nossa realidade ou, ao menos, enxergá-la de uma outra forma. Petit (2013, p. 144) nos diz que “os psicanalistas nos ensinam que, para poder tratar a realidade que nos cerca, o mundo real, devemos começar sendo capazes de imaginá-la. O imaginário põe em movimento, leva a outro lugar, faz surgir o desejo”. Se não é o ensino de literatura o local de excelência para se trabalhar a escrita como forma de elaboração psíquica, com essa abertura para o imaginário, para a criatividade, para a sensibilidade, para a fantasia, que outra área teria condições de assumir esse papel dentro da escola?


3. O QUINTAL ENTRE EDUCAÇÃO E LITERATURA

Com exceção da Educação Infantil (que parece destoar de um cenário de lacunas no campo das experiênciações artísticas por privilegiar o lúdico no trabalho como um todo), as obras de arte, quando estudadas na sala de aula, são geralmente enfraquecidas quanto a seu valor autônomo e transformam-se em ilustração ou pretexto para outros assuntos, amiúde estão a serviço da moral, do social e do desenvolvimento cognitivo (ALMEIDA, 2017). Tanto no Ensino Fundamental, em que a escrita literária é pouquíssima desenvolvida, como no Ensino Médio, fase em que a literatura assume papel quase que exclusivamente informacional e, grande parte das vezes, submisso aos vestibulares, a criação poética parece enfrentar dificuldades de diversas ordens para ter reconhecidas sua natureza estética e sua dimensão psíquica.

De fato, não podemos negar o direito ao saber e à informação em todas as suas formas, o que abrange, aliás, o acesso aos direitos culturais. Se abraçarmos a concepção de literatura enquanto direito humano, tão relevante para o equilíbrio social como é o sonho para o equilíbrio psíquico, concordando, assim, com Candido (2011), precisamos entender que, nesse âmbito, figura também o direito de descobrir-se e de construir-se com a ajuda das palavras.

Segundo Petit (2013, p. 49), “a leitura, mais precisamente a leitura de obras literárias, nos introduzem também em um tempo próprio, distante da agitação cotidiana, em que a fantasia tem livre curso e permite imaginar outras possibilidades”, apresentando-se como “uma via por excelência para se ter acesso ao saber, mas também à fantasia, ao distante e, portanto, ao pensamento” (PETIT, 2013, p. 146). Posto isso, por que a escrita literária parece menos desenvolvida nas escolas sendo que é, de igual modo, uma atividade psíquica, cujo trabalho mais complementa do que se opõe à formação do leitor literário?

O trabalho com autoria de textos poéticos trata-se, por conseguinte, de uma forma de defender o direito a exercer uma atividade psíquica e, como efeito, o direito à fantasia, ao pensamento, à criatividade. Trata-se do direito de desenvolver a escrita para pensar e fantasiar. Ao sustentarmos a necessidade da construção de uma voz poética autoral na sala de aula, facilitamos aos estudantes - e a nós também - a oportunidade de ter acesso a objetos culturais na extensão do jogo da infância e das palavras. A partir disso, podemos nos valer desses objetos para sermos autores neles e com eles. A escola, criando momentos para isso, auxilia na recuperação de nossa capacidade de imaginar, de simbolizar, de pensar e de estabelecer relações com nosso interior.

Se a literatura é, por certo, “fator indispensável de humanização” (CANDIDO, 2011, p. 177), o trabalho com esse campo artístico não pode ficar restrito ao desenvolvimento de habilidades intelectuais (cognitivas), tampouco preso a seu caráter informacional. Devemos reconhecer que as peculiaridades do fenômeno literário envolvem também elaborações psíquicas, conforme justificamos aqui ao ressaltar os elos entre a brincadeira infantil e a criação poética. Sendo assim, podemos buscar formas de mostrar essa arte como ao alcance de todos e todas, como algo possível a cada indivíduo, desdobrando o “direito à literatura” em “direito de escrever literatura”.


4. TODO POETA É UM “CRIANCIONISTA”

Poeta e criança se tocam em um jogo ficcional de desejo, prazer e afeto, dentro do qual criam um mundo imaginário levado, por ambos, com seriedade. O universo mágico da infância, nesse sentido, se apresenta como um tempo de encanto que clama por ser resgatado e “se o homem não abdica de um prazer já experimentado, reelaborar a brincadeira de outrora significa reviver a alegria abafada pelo presente” (PASSOS, 1995, p. 104). Nesse viés, ainda que forme fantasias, o adulto busca escondê-las por vergonha, entretanto, diante da via metafórica da criação poética, ele se permite reaver o desejo de infância que parece distante e se sente mais livre para usufruir dos próprios fantasmas sem receios, ao mesmo tempo em que se alivia de determinadas tensões.

Daí que ler e escrever são sublimações. Nesse espaço de imaginação, no qual ecoam desejos e afetos, para quem lê, “o texto atuaria como imagem especular do outro que somos e, com frequência negamos” (PASSOS, 1995, p. 101) e, para quem escreve, o texto dá forma aos aos fantasmas, transformando-os em realidades de outra ordem, na qual eles são nomeados, desenhados, poetizados e, com isso, podem ser enfrentados.

Nesse profícuo diálogo, ambos os campos se iluminam: a literatura ganha por abrir mais possibilidades de interpretação em sua virtual totalidade com as contribuições de outras áreas e a psicanálise recebe um ganho quando “a construção literária dá ‘forma’ aos seus conceitos, já que eles nos chegam envolvidos pela inefável magia do trabalho estético” (PASSOS, 1995, p. 82). Embora os propósitos de Freud tenham sido outros e, talvez, o autor não vislumbrasse atingir o universo da educação, é inegável também que essa discussão pode aperfeiçoar e estreitar os vínculos entre os estudantes e o ensino de literatura nas escolas, o que pode ajudar, consequentemente, as relações deles com a realidade que os cerca.

Diante do desejo de escapar daquilo que é adverso em nossa realidade, a poesia pode servir de metáfora e de alternativa no lugar da neurose. Assim, na impossibilidade de corrigir o que nos aparece como insatisfatório, trabalhar isso poeticamente pode ser uma possibilidade. Levando em conta a importância da arte em nossas elaborações psíquicas, a escola, valorizando experiências estéticas concretas em sua práxis educadora, pode facilitar a construção de uma sociedade em que os adultos, em vez de dissimular suas fantasias e sentir vergonha de serem sensíveis, possam se abrir para suas fantasias sem receio e enxergar caminhos para libertação das tensões da psique.

Portanto, o trabalho com escrita literária na sala de aula vai além ensinar técnicas artísticas, é antes uma prática libertadora de ensino, que favorece o empréstimo aos objetos reais e o empréstimo do olhar de criança para inventar um novo mundo a partir das palavras. Nesse processo de invenção, podemos enxergar algumas possibilidades de transformar o mundo real ou, ao menos, olhá-lo a partir de novos prismas. Se, para Freud (2021), todos os grandes homens conservam algo de infantil, podemos levar nossos alunos, mesmo que em sua fase de crescimento, a deixarem viva a criança (e a poesia) que existe dentro de si.

Sendo o tema desta resenha a importância do fazer poético, não poderia encerrar de outro modo que não fosse com poesia. Além dessa singela contribuição teórica deste texto, compartilho um poema que versa sobre esse fenômeno da criação, sobre o fato de "pegar emprestado” o olhar de infância para compor artisticamente. Faço isso para afirmar que devemos levar a sério o brincar, igual uma criança, para despertar o poeta escondido que existe em cada um de nós.


[fenomenologia da criação]


tinha decidido ser

especialista de sorrisos

erudito em entender segredos de gracejo


foi então que estudei uma criança

descobrindo disfarce de nuvem

e cientista visitando nova galáxia

naquele satélite de imitar infinitos


entendi nada

foi bom


entendi mais ao desentender

que o segredo não está na nuvem

nem na galáxia

está no olhar de menino

que também é de imitar infinitos

[teve aquela cientista com olhar tão de infância

que até descobriu um buraco negro na parede do céu]

foi assim

que virei

criancionista


nas ciências poéticas

as coisas não servem

pra descrever mecânica de inícios

são para inventar bigui bangues

explicar é antimatéria do verso


estudante de astrofísica das coisas de quintal

hoje [às vezes] apenas sei

gracejar estrelas

indecifrar risos e plantinhas

investigar infinitos


(ALMEIDA, 2021, p. 35).


REFERÊNCIAS


ALMEIDA, Daniel Carvalho de. amanhã sonhei que uma peste invadia a casa. São Paulo: Selin Trovoar, 2021.

_____. Poesia de resistência na escola pública: compromisso ético e formação de identidade. 2017. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília, MEC/CONSED/UNDIME, 2017.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 11a. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007.

_____. O direito à literatura. In: Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 171-193.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREUD, Sigmund. Arte, literatura e os artistas. Trad. Ernani Chaves. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

PASSOS, Cleusa Rios Pinheiro. Confluências, crítica literária e psicanálise. São Paulo: Nova Alexandria: Editora da Universidade de São Paulo, 1995.

PETIT, Michèle. Leituras: do espaço íntimo ao espaço público. São Paulo: Editora 34, 2013.

_____. Os jovens e a leitura. São Paulo, Editora 34, 2009.

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