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redenção

caminho. caminho com pés descalços na areia macia. o vento que corta meu corpo nu não me impede de seguir em direção ao mar. neste momento, pode-se ouvir apenas minha respiração ofegante e o som das ondas que se confundem com os gritos de uma gaivota que desaparece no horizonte. seu canto guia-me para a imensidade das águas.


o primeiro contato de meus pés com o mar intensifica o frio. os resquícios de raios solares do crepúsculo são insuficientes para aquecer meu franzino corpo que treme de forma tímida. todavia, as pequenas ondas que tocam meus pés fazem-me perceber que existe um frio ainda maior dentro do peito. agora, dentro de mim, pode-se ouvir apenas os gritos de um herói e de um monstro que duelam entre si.


a cada passo dado, o mar que envolve minhas pernas e o vento que abraça minhas costas revezam-se para manter o clima. o vento golpeia meu corpo e a inércia, minha alma.


as águas já tocam meus lábios. sinto o gosto de água salgada. as ondas fortes brincam com meu corpo, assim como o tempo brinca com nossa existência. sinto o gosto de vida amargurada. uma onda maior bate forte em meu peito. desestabiliza-me. cobrem-me as águas por inteiro. sinto medo no instante em que meus pés se perdem pela primeira vez da areia. ainda assim, sigo resoluto o caminho das águas. há momentos em que chegamos a um ponto em que não é mais possível retornar.


atrás de mim o sol se esconde, enquanto, a minha frente, o negrume nasce juntamente com as primeiras estrelas que despontam no lado leste do hemisfério. sigo firme, convicto, com o olhar fixo no horizonte, mas minhas pernas vacilam. desejo assistir a última tarde que se espreguiça, mas faz parte de minha redenção contemplar apenas a névoa e as sombras.


uma onda implacável me atinge de forma precisa e leva-me em seus braços. faz de mim frágil menino. perco o domínio de meu corpo e de minhas ações. recupero-me. o mar me golpeia com outra onda. luto. em vão. outra onda. mal me recupero dessa e surge ainda outra. busco a superfície. resisto. novamente em vão. prisioneiro das águas que me conduzem segundo suas vontades, sinto-me lânguido diante do ímpeto do mar. junto à maré alta, lembranças daqueles que tanto amei envolvem-me. castigam-me as águas, assim como eu os machuquei. entrego-me ao carrasco mar e alegro-me nas águas ao me refugiar nelas. sereno, estico meu corpo, abro os braços em sinal de cruz. uma lágrima, a única lágrima, confundiu-se com a imensidão do oceano.


meu corpo acostuma-se com o frio e com os movimentos da maré. não sinto mais areia nos pés. tento o último grito de libertação, mas as águas fazem-me engolir o brado de volta. sinto o corpo leve, o coração pesado, a vida cada vez mais breve, enquanto meu ser é levado. fecho lentamente os olhos e espero repousar na outra margem.




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