vivo num bosque tão denso
quanto o inverno
aqui a cerração é intensa
as belas árvores, os arbustos, as pequeninas plantas
o lago gélido, cercado de mata e relva
todas as sutilezas da natureza
são ofuscadas aqui pela neblina
às vezes é difícil voltar pra casa
a névoa também esconde a choupana na qual durmo
cabana singela, rústica de madeira,
fica no centro do bosque
entre duas árvores imensas
uma de primavera
com várias folhas, frutos e pássaros que entoam a canção da essência da vida
outra, de outono
galhos sem ninhos de pássaros galhos emaranhados que fazem vários nós
cujas folhas secas são o tapete de boas-vindas
dentro do casebre
acendo a lareira e a densidade some
acendo a lamparina e posso ver o que a neblina escondia
dentro, crio outros bosques quando quero
bosques tão reais quanto os lá de fora
minha choupana é pequena mas nela cabe mais que um bosque
tenho uma sala em que cabe o mundo
e os vários mundos deste mundo
subo as escadas em espiral
ouço o ranger dos passos
que me levam ao quarto da pequena cabana
onde há diversos espelhos
de várias formas, tamanhos, cores
em cada espelho vejo um reflexo diferente de mim mesmo
gestos, olhos, penteados, trajes,
desejos, medos, anseios e vontades
tudo refletido diferentemente em cada espelho.
reflexo idiossincrático, peculiar
reflexo moderno, problemático
que
se
desmancha
no
ar
apenas em um espelho não há reflexos
somente uma sombra: a silhueta do eu
espelho, fosco, esférico
semelhante a uma grande coluna em forma de um cilindro
fica bem no centro do quarto
sua forma oval não nos permite ver
toda a imagem espelhada
[e quanto mais difícil fica entender a imagem retratada no espelho-cerne, mais dá vontade de quebrar-lhe com um soco]
parece que falta pouco para que se trinque
seu reflexo é demasiadamente pesado para seu vidro
andando ao seu redor
olhando-o atentamente
ele carrega o reflexo de todos os outros espelhos
dentro da sombra que reflete:
a junção de todas as imagens formam
o desenho de um herói e de um monstro
lutando para sair de um labirinto
a luta é tão densa quanto o frio do bosque
tão intensa quanto a penumbra de vários outros bosques
a cada dia um reflexo novo surge
aumentando o conflito das sombras
basta uma rachadura no vidro desse espelho para abalar a estrutura da cabana inteira
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