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Estação Realidade


5 da matina, o relógio tá tocando

é só mais um dia de trabalho de quem sonha em ser poeta suburbano

 

eu acordo, me levanto, mas o sonho de viver de arte continua adormecido

não há espaço para humanidades dentro do mundo corporativo

 

lavo o rosto, acordo pra realidade

tomo uma ducha, me preparo pra insanidade

me visto correndo

meia cueca calça camisa gravata cinto sapato um casaco

mal da tempo de tomar um café

pra aguentar a batalha diária é preciso ter Fé

 

Saio pro trampo, pego um busão, mas vou em pé

dia chuvoso, hoje vai ser longa a caminhada até a Sé

já no metrô, o contingente de gente empurra mais forte que maré

já logo cedo, a vida me dá um pontapé

(pior pra quem é mulher, aguentar uns mano tarado dando um migué)

tanta gente que sofre junto, não é?

Prazer, me chamo Daniel

e também sou levado a sobreviver como um Robinson Crusoé

 

Exprimido entre outros corpos, tento exprimir minhas ideias, expressar minhas rimas

mas é tanta gente que nada cabe, nem embaixo ou cima

não há espaço nem pros versos, isso até desanima;

duelam, dentro de mim

as metáforas de artista e as metas de um trabalho fascista

Daniel, Daniel...

vamô sê realista?!

Como ser romancista socialista nas garras do mundo capitalista?

Aí fico pessimista, aí já viro quase um niilista.

Poesia não é produto que vende fácil num mundo materialista

por isso tenho que pensar é nos lucros de produção que vou dar pro patrão

não dá tempo de buscar inspiração pra escrever histórias bonitas que vem do coração...


[e assim, meu poema se perde entre a plataforma e o vão]


 

Chego no trampo, o prédio mais parece prisão.

Dou “bom dia” pra moça bonita da recepção... troco olhares

(Quem sabe não faço um poema pra ela? Quem sabe não é ela minha inspiração?)

mas aqui dentro não dá tempo de estreitar relação

assino o ponto, bato cartão, aqui o mais importante é fazer mais que a obrigação

 

Na hora do almoço (e é só meia horinha), ainda tem matéria da facul pra estudar

mais uma vez, meu poema se desmancha no ar

Preciso ao trabalho voltar!

engulo correndo o arroz e o feijão

engulo a seco a correria, a tensão


 

papéis, papéis, papéis, papéis e mais papéis

se marcar bobeira, vão me deixar sair daqui só depois das dez


(que sufoco essa rotina de trabalho que assassina

mata nossa criatividade

mata nosso senso de humanidade)


E o patrão? O patrão nem sabe o que sinto!

De sexta, toma vinho tinto e faz selfie na festa enquanto nóis faz pra ele hora extra

 

Fim do expediente: disputar um espaço no metrô com um mundaréu de gente!

De repente, uma ideia me vem à tona, uma poesia vem quase pronta, mas

não tenho como pegar papel e caneta na mão, nem dá tempo de fazer anotação

 

No vagão lotado, no apertado espaço, penso no meu verso que não faço

me desfaço em pedaços, viro estilhaço na multidão.

Descalço de ideias, numa vida de odisseias

alço voos de fracasso

ouço notas tristes no compasso

vivo desregrado em descompassos

sou mais um touro de Picasso

que volta só o bagaço

 

nasce o cansaço, nasce o suor

nasce a revolta na volta pra casa ao pensar nos problemas que

impedem o nascer do poema.


 

Contemplo, então, o que é dilema

Vira tema de meu poema uma vida vivida a duras penas

 

Observo os rostos que sofrem e transpiram junto comigo:


 A senhora de aparência cansada ali sentada

O pai de família que quase dorme em pé por conta da longa jornada

E o menino, de camisa rasgada,

que vende bala no trem e da desigualdade é refém

 

rompo com o olhar contemplativo

compor sobre a fuga do real não será meu incentivo

em vez de ser sedativo, prefiro ser curativo

não sou da realidade um fugitivo

mas sou alguém ativo na luta

cujo fazer poético é reflexivo


Meu ócio criativo

é a observação do que é duramente vivido.

São esses os ócios do ofício de um poeta

que na dialética se completa.

São ócios do ofício 

tratar da realidade de um tempo difícil.

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